1. Em busca do Centro Divino
“Em última análise, nosso problema é o seguinte: como recuperar a integridade intelectual que torna os homens aptos a perceber a ordem dos valores”.(Richard M. Weaver [1])
Antes de beber o cálice fatal de cicuta, Sócrates aponta o indicador para o alto, como quem diz: “a dimensão horizontal da vida está doente e condenada à morte, só na verticalidade há cura”. A dimensão horizontal é a profunda crise política de Atenas, cujas raízes são intelectuais e morais. E a dimensão vertical? Em meio ao luto, Platão segue o dedo de seu Mestre e volta seus olhos ao que ele aponta: o céu infinito e o astro rei a ordenar tudo. O Sol é a fonte vital de todo o universo físico, assim, no plano espiritual, a Ideia do Bem é o centro vital a doar consciência e conhecimento ao homem (Rep. VI – 507 b- 509 d): eis a descoberta platônica do Mundo das Ideias. A cura da crise ateniense repousa nos indivíduos capazes de acessar e pautar sua conduta naquele mundo. A solução, portanto, é formar esses indivíduos, ou seja, é urgente uma educação filosófica (paidéian kaì philosophían – Rep. 498b).
Como resgatar a integridade intelectual? Submetendo o intelecto humano a uma verdade que o transcenda (e que sempre o transcenderá): a Ideia do Bem. É esse exercício dialético que observamos Sócrates fazendo ao longo dos diálogos platônicos. A Verdade sempre estará além do discurso humano, o quid est (ser) buscado por Sócrates é irredutível à linguagem. Ainda assim existe, em sentido absoluto. Isso exige um compromisso intelectual de exame constante de si mesma (tendo em vista a realidade objetiva). Diante das perguntas fundamentais, os sofistas dão respostas conclusivas. Já Sócrates, sempre encontra uma maneira de expor a ignorância desses autodeclarados sábios. Afinal de contas, onde acaba a ignorância humana? Ou ainda: quando é que acabará? A filosofia é essa chaga aberta, essa tensão contínua do ignorante em direção à Sabedoria. A filosofia é abertura, a sofística é fechamento. O fechamento da consciência humana traz consequências catastróficas, tanto na dimensão individual (o orgulho) quanto na dimensão pública (a ideologia).
2. Terra Desolada
“Strepsíades: Ali é o “pensatório”, a escola dos espíritos sabidos. Lá dentro vivem pessoas que, falando a respeito do céu, nos convencem de que ele é um forno que cobre a gente e de que a gente é o carvão dele.”(Aristófanes em As Nuvens)
Considerar o céu a tampa dum forno e a vida humana um carvão que arde sem por quê: eis o supra-sumo da sagezza pós moderna (ou seja, o niilismo). Naturalmente, a atitude psicológica frente a essa “realidade” absurda será a negação e a revolta: “que Deus sádico é esse que criou essa joça sem sentido? E quem é que o autorizou a colocar-me nela?” Catalisando as consequências dessa linha de pensamento, destaco duas: 1- Não há Deus, logo o homem é o “deus” criador dessa realidade; e 2- Eu odeio a realidade e farei de tudo para destruí-la. A negação radical de qualquer sentido transcendente para a vida humana é o pano de fundo mental de grande parte dos iluminados do dia. Entronados em seus pensatórios, eles emanam sua sabedoria aos desprovidos de diprôma. Aqueles que se deixam levar pela cantilena do niilismo passam a ser utilíssimos aos movimentos de revolução social. Afinal de contas, haverá motivação maior à destruição do status quo do que converter o instinto religioso do homem (transformação de si em busca da Transcendência) em instinto de revolta social (transformação do entorno em busca da utopia, i.e. do “paraíso” imanente)? “O meu reino não é desse mundo”, diz Jesus nas Escrituras [2]. Já os panfletos de Marx…
“A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião, enquanto felicidade ilusória dos homens, é a exigência da sua felicidade real. (…) A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em tomo de si mesmo.”[3]
Alguém aí se lembra dos sofistas e seus umbigos solares [4]? O marxismo segue a mesma linha da sofística grega: abolir os valores transcendentes visando mais “poder de ação” sobre a sociedade. Do vermelho sacrificial da paixão de Cristo, passa-se ao vermelho assassino das revoltas armadas. Da religião transcendente, passa-se à religião civil.
A batalha de Platão foi construir uma instituição onde os valores transcendentes pudessem ser resgatados, guardados e reintroduzidos no mundo da cultura: a Academia. Por ironia do destino, seu projeto original foi pervertido: hoje é a academia quem combate os valores transcendentes, encarniçando-se em desconstrui-los. A tristeza e o desamparo espreitam os corredores de nossas universidades (principalmente as alas de (des) humanas), evidenciando o vazio de um abandono. O abandono do Ideal, o assassinato do Pai. A Universidade (ou seja, a instituição que, por vocação, deve espelhar a integridade da inteligência humana) perdeu seu Centro Transcendente.
A descrição satírica de Aristófanes, apesar de referir-se à intelligentsia de seu tempo, cai como uma luva para a nossa intelligentsia. Onde foi parar o eros acadêmico? A paixão teórica desinteressada e desinteresseira? Onde foi parar o ágon filosófico? A universidade é nossa terra desolada, já estão longe os tempos de glória. Urge criarem-se círculos de cavaleiros abnegados, investidos de nobreza e devidamente treinados para as batalhas dialéticas. Urge reencontrar o Graal, o centro divino capaz de devolver a vida e o sentido à universidade. Mas antes de encontrar cavaleiros, é preciso encontrar pessoas maduras…
Nós, os xófens
Se o homem, de uma maneira geral, tem vocação para a escravidão, o jovem tem uma vocação ainda maior. O jovem, justamente por ser mais agressivo e ter uma potencialidade mais generosa, é muito suscetível ao totalitarismo. A vocação do jovem para o totalitarismo, para a intolerância é enorme. Eu recomendo aos jovens: envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais depressa possível, isto é um azar, uma infelicidade.” (Nelson Rodrigues)
Muitos jovens, em nossos dias, ouvem a velha cantilena: “acredite em você, você é especial, mude o mundo”. A realidade é que nós, jovens, somos uns coitados sedentos por alguma validação de nossa “identidade” (essa ilusão mesquinha e com consistência de geléia). Esses convites, porta de entrada aos movimentos políticos, buscam engajar o jovem no “verdadeiro” sentido da vida: a revolução social. Os jovens nem conhecem a si mesmos, quanto mais a complexidade do mundo ao seu redor. Como querer transformá-lo antes de conhecê-lo? Ao invés daquele convite lisonjeiro e falso, seria melhor dizer: “querido, você é um ignorante, sua personalidade tem consistência de isopor; pelo amor de Deus, dê seu melhor para ser alguém!” Contudo, aos menos conscientes de sua miséria interior, aquele lisonjeiro convite para “mudar o mundo” prevalece. E por isso a advertência de G. Friedman torna-se atualíssima:
“Numerosos são aqueles que se absorvem inteiramente na política militante, na preparação da revolução social. Raros, muito raros aqueles que, para preparar a revolução, querem dela se tornar dignos. “[5]
Será que a sanha de reformar o mundo, esse orgulho travestido de “justiça social”, já não rendeu sangue o suficiente à humanidade? Querido jovem revolucionário, sua hipocrisia já dá na vista: que tal fazer as pazes com seus pais, antes de querer revolucionar a Pátria? Dedico ao senhor os versos do poeta Roberto Evangelista [6]:
(Sem ofensas)
Vá-se à merda!
Adube-se! Vingue-se!
Cresça e floresça!
3– O amor arrasta
“Em todos os lugares, aprendemos somente com aqueles que amamos.”(Goethe)
“Um professor afeta a eternidade; ele nunca pode dizer onde a sua influência termina.”(Henry Adams)
Sócrates e o eros pedagógico
A palavra explica, o exemplo convence, o amor arrasta. O amor platônico não é uma covardia masturbatória de magros crapulosos. Ou uma idealização esquemática que repudia a vida concreta. O eros platônico é o amor entre mestre e discípulo, entre aluno e professor. Platão foi, acima de tudo, um professor. Seu projeto educacional, como toda pedagogia genuína, acredita na evolução do homem através da ciência. Em outras palavras, acredita na possibilidade de, através do conhecimento, o homem passar de um patamar inferior de existência a um patamar superior (uma espécie de upgrade ontológico). Sua Academia e sua obra escrita são frutos desse amor aos seus alunos. Mas o que é que diferencia esse amor de outros? A verticalidade. O professor é, por vocação, a ponte a ligar o aluno ao conhecimento. Como num triângulo, a relação horizontal entre aluno e professor é guiada por um vértice superior: a Verdade. Quando dialoga com seu aluno, o professor trairá sua vocação caso desvie os olhos da Verdade. Se suas palavras miram agradar, ele já se perdeu. Poderá ser muitas coisas, mas terá deixado de ser professor. É essa disciplina do olhar, esse exercício espiritual, o que qualifica um professor, fazendo-o ascender de sua idiotice congênita até alcançar o máximo de transparência possível. Para que a Verdade possa brilhar através dele, ou melhor, para que Ela brilhe apesar dele.
O ideal do educador é tornar-se o mais transparente possível, até transmitir, feito crisol translúcido, a luminosidade dos valores reais.
O professor é uma ponte, o professor é um crisol; o ideal é que ferva de amor pelos valores que ensina, até que funda a si mesmo naquilo que ama (“Transforma-se o amador na coisa amada/Por virtude do muito imaginar”). Então seguirá o exemplo de Sócrates: será fervor, será tomado pelo eros pedagógico, fará de si uma seta a apontar o que está além, será crisol translúcido!
Sócrates e a Justiça
A moral humana não surge por dedução, mas indução. A partir de casos concretos induz-se o universal. Através dos exemplos concretos, dos heróis e santos, as mais altas potencialidades humanas são reveladas, delas extraem-se preceitos e normas gerais para a orientação da conduta particular, estruturando-se a moral. É do Perfeito que o homem abstrai o ideal de perfeição, como um filho encantado com a virtude de seu adorado pai. Nesse sentido, a convivência com homens nobres e virtuosos (“hombres de carne y hueso”, como diria Unamuno) é muito mais rica, para a formação moral, do que mil e um tratados filosóficos. Na origem da filosofia, está um homem de carne e osso: “o julgamento e morte de Sócrates não é apenas o cume de uma história viva e dramática, mas também uma instância visível da Ideia de Justiça” [7]. A ideia do Bem e sua consequência (a Justiça) manifestam-se no mundo concreto através de seus abnegados servidores.
O resultado final da educação filosófica é a Justiça, esse é o valor procurado ao longo de toda República. É claro que, para a batalha cultural, Platão dará aos seus alunos um treinamento dialético afiado, ensinando-os um volume enorme de conteúdos pelos quais possam agir na assembleia da pólis. Contudo, de que valerá todos esses conhecimentos, caso falte o conhecimento essencial do Bem? Caso falte a Justiça a converter o amor ao que está além em amor-doação ao próximo? Nesse sentido, Platão é um cristão avant-la-lettre, antecipando a mensagem atemporal expressa por São Paulo: “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se amor (caritas) não tivesse (…) eu nada seria” [8].
Podemos encontrar a justiça platônica já na primeira palavra da República (e depois confirma-la, no livro VII):
“A primeira palavra do Livro I – “κατέβην” (“Desci” do verbo καταβαίνειν; “descer”) – incorpora o ensino completo e maduro de Platão sobre a Justiça, i.e., a principal, primordial e de fato única preocupação do diálogo. Belamente escrito como é, repleto de riquezas literárias, políticas, históricas, atléticas, musicais, militares, econômicas, matemáticas, harmônicas, lógicas, psicológicas, ontológicas, metodológicas e pedagógicas (uma lista nada completa) de tal maneira que parece quase uma blasfêmia dizer que qualquer [uma só] coisa seja sua principal preocupação, o único propósito de Platão é persuadir o leitor – assim como o único propósito de Sócrates é persuadir Glaucon – a escolher a Justiça. Em retrospecto, isto é, no contexto da alegoria da caverna no livro VII, a primeira palavra de Sócrates revela que a justiça é a decisão voluntária do filósofo de voltar à caverna, instanciada em primeiro lugar pelo próprio Sócrates.” [9]
A torre de marfim não salva, o isolamento não salva, afinal de contas, “eu sou eu e a minha circunstância e se não a salvo, não salvo a mim mesmo” [10]. A redenção da pólis está (em alguma medida) em minha ação individual: quando ascendo, reconheço a Realidade espiritual e de lá desço, em busca de salvar minha circunstância concreta. O filósofo platônico contempla a Ideia do Bem e de lá desce, pelo dever de encarnar (o quanto puder) a justiça: por sua ação concreta o Bem desce. O Centro Divino buscado por Platão coincide com o centro da cruz cristã, ali há a união da dimensão vertical e da horizontal, ali a ação concreta torna-se nobre, por apontar ao que está além.
A morte de Sócrates
Após receber a sentença de condenação à morte, Sócrates faz sua declaração final. Ao invés de súplicas histéricas, seus acusadores e toda assembleia ouve (espantada) as palavras corajosas de um homem fiel a si mesmo. Segundo Platão, o “varão mais justo de seu tempo” [11]:
“Vós também, senhores juízes, deveis esperar a morte e considerar particularmente esta verdade: não há, para o homem bom, nenhum mal, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu destino. (…) Não me insurjo absolutamente contra os que votaram contra mim ou me acusaram. (…) Contudo, só tenho um pedido que lhes faça: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também. Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade.”[12]
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[1] Richard M. Weaver. As ideias têm consequências, p. 25. É Realizações.
[2] Bíblia. João 18:36.
[3] Karl Marx (2005). Crítica da filosofia do direito de Hegel. [S.l.]: São Paulo: Boitempo Editorial. pp. 146/147.
[4] Link para o texto I, onde falo dos umbigos solares https://escoladeartesliberais.com.br/escada-do-amor-sintese-da-educacao-filosofica-em-platao-parte-i/
[5] G. Friedmann no livro de Pierre Hadot, Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, p. 19. É Edições.
[6] Roberto Evangelista. Mínimas orações. Editora Valer, 2012.
[7] William H. F. Altman. Plato the teacher: the crisis of the Republic. Lexington Books, pg. 279.
[8] Bíblia, Coríntios 1:13.
[9] William H. F. Altman. Plato the teacher: the crisis of the Republic. Lexington Books, pg. 37,38.
[10] Ortega y Gasset, Meditações de Quixote, Introdução.
[11] Platão. Carta VII (324 d-e). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.
[12] Platão. Apologia de Sócrates (41c – 42 a). Tradução: Jaime Bruna. Nova Cultural, 1987.
Yurio Berlaender é licenciado em Filosofia e Mestre em Filosofia Antiga pela UFSC, foi professor na rede pública de ensino médio. Seu foco de estudo é a filosofia de Platão, área em que reconhece como mestre o prof. William H.F. Altman. Atualmente trabalha na elaboração de projetos na área de educação e escrita criativa, através de sua empresa individual: Ânima & Côre.
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