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Entre abismos e belezas: a obra “Os Irmãos Karamazov” de Fiódor Dostoiévski (Parte II)

  • Foto do escritor: Gustavo Bernardino
    Gustavo Bernardino
  • 18 de jun. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 26 de dez. de 2024

Nesta Parte II iremos juntos refletir o destino da família russa Karamazov. Através da quadratura das personagens centrais desvelaremos a obra, não exaustivamente, claro, mas pelo menos deixando clara sua estrutura e fazendo proveito de possíveis aprendizados. Para ler a parte I clique aqui.


Fiódor e o prazer


Fiódor é o patriarca da família Karamazov, adepto do prazer sem limites, senhor máximo das farras. Conduziu a obra familiar de forma irresponsável, negligenciado sua primeira e depois segunda esposa, casamentos que sempre acabavam trágicos, em morte, enquanto Fiódor cegava sua consciência em alcoolismo e entrega desesperada ao mulherio. Os filhos são criados por parentes e conhecidos, passando de mão em mão até a fase adulta, vítimas do esquecimento e imprevidência absurdos do pai.


Dostoiévski escancara-nos logo no início a desordem dos instintos, as possibilidades práticas do hedonismo (do grego antigo Ἡδονή, hedonê, prazer) irrefreável, que descamba invariavelmente em violência, abandono e dispersão dos laços humanos.

O romance começa na “noite da consciência”, é um mergulho nas trevas e na animalidade. A prole deste calamitoso pai são três personalidades distintas, três psiques (do grego ψυχή, psychi, alma): Mítia – irmão mais velho, do primeiro casamento -, Ivan e Aliocha – irmãos do segundo casamento, que são o do meio e o caçula, respectivamente.


O pai e os três filhos


Em nosso estudo, caracterizamos os arquétipos da seguinte maneira: Fiódor é o hedonismo, Mítia a revolta, Ivan o niilismo (do latim nihil, nada) e Aliocha a espiritualidade, a transcendência (do verbo latino transcendere, subir sobre, atravessar, que sempre significa ir além da coisa imediata, ultrapassá-la).


Mítia e a revolta


Mítia é o filho revoltado. não consegue suportar a tragédia da sua existência. Seu desespero e infelicidade crescem até às raias da loucura, quando sente impulsos de assassinar o próprio pai.


Claro, parricídio é algo terrível, mas Fiódor não se ajuda: não basta ser mal exemplo, ele também se apaixona pela mesma mulher que o filho, Grúchenka, e quer tomá-la para si, além de roubar a herança que a mãe deixara a Mítia.


Este filho tem muitos motivos para ser um revoltado. Mas por mais que uma revolta tenha motivos, jamais poderá ter razão. O caminho inevitável de toda revolta bem justificada é tornar-se justamente naquilo que a originou. As revoltas sociais dos últimos três séculos não me deixam mentir, pois não só retornam ciclicamente ao ponto de origem, mas agravam drasticamente a situação inicial, assim como um lunático andando em círculos cava um buraco na capoeira do terreno baldio. O destino de Dantons é começar com guilhotinas e acabar em guilhotinas.


Mítia, portanto, assemelha-se cada vez mais ao pai, a ponto de no final da obra não vermos quase diferença entre a personalidade de um e de outro. Assim, Dostoiévski traz à tona uma das feições do mal: quanto mais é frontalmente odiado, mais protubera-se no coração daquele que o odeia. O ódio não tem em sua composição outra coisa que não o ódio, e é de sua natureza atender ao chamado prontamente, sendo-lhe indiferente a justificativa com que se lhe evocam.


Mítia busca se libertar da sua teia de infortúnios e, nesta busca frenética, acaba  provocando o efeito diametralmente oposto ao desejado: cercado de sofrências ininterruptas, Mítia planeja seu suicídio e acaba por fim encarcerado. Para completar o ciclo trágico, ele é preso por um crime que não cometeu, o assassinato de seu pai, Fiódor Karamázov. Seu espírito já está tão alquebrado que não tem força para defender sua inocência, e toma a situação como a única forma e oportunidade para mudar de vida. Apesar da injustiça, ele não se sente injustiçado, pois “o tempo todo eu queria me corrigir, mas vivi como um animal selvagem”, disse ele.


Ivan e o Nada


Iván, o irmão mais velho, torna-se um intelectual ateu, cético e nihilista. Mítia manifesta a revolta na atitude prática, Ivan na atitude de espírito. Ivan conserva um comportamento moral, mas nega as bases civilizatórias que o assentam. Ivan tenta ver-se livre de Deus, das leis e dos costumes tradicionais. Suspeitando de mestres e de verdades, pois, se o esteio de sua origem, de sua família, já viera rachado, qual outra atitude escolher se não a de uma profunda suspicácia? Ivan elege então a dúvida como Mestra. Não crê em nada, e prefere abnegar seu passado suplantando-o com as boas novas modernosas da Europa, juntando-se ao coro de intelectuais que repetem a mesma cantilena da decadência grega, as mesmas dúvidas e falácias de cínicos, hedonistas e sofistas, o mesmo choro dos poetas dos tempos finais de Roma[1], quando as leis do corpus juris já não estancavam os vazamentos de seu espírito corrompido.


Ivan vai lentamente perdendo-se no labirinto de sua mente, não crê mais no fio condutor da moral que antes o guiava. Ao fim é tomado pela loucura, que se manifesta em padecimento psíquico e alucinações. Seu implacável questionamento perfura toda a realidade, perfura-a sem jamais penetrá-la. Foi tomado pelo espírito da duvidação ad infinitum, não a dúvida investigativa, que possibilita o exame profícuo das causas, mas a que paralisa o homem no estado de descrença. Se não houver remédio para tal, de descrença vai-se ao desespero, e quando nada mais se espera da vida, passa a se esperar da morte, do nada, da não-existência. Já não sabia discernir o real da fantasia, e também não tinha base sólida para combater a enfermidade, afinal, cultivara o Nada em seu peito, e o adágio latino é simples e claro: ex nihil nihilo fit, isto é, do nada, nada surge. Então não lhe nasceu a esperança de uma cura. É normal em nossas vidas aplacar as dúvidas e remediar as dores, juntando retalhos aqui e acolá, e com uma fina linha de esperança dar forma ao tecido de nossas vidas, mas Ívan rasgou o tecido para além do remendo. Abdicou da costura, Jogou fora a linha, a agulha e com elas foi-se também junto o alfaiate.


A Mentira e a Liberdade


Quanto mais Dmitri e Ivan buscam libertar-se, tanto mais tornam-se escravos de seus próprios demônios. Mítia cede à toda sorte de vício e paixão, buscando ali a sua promessa de felicidade e libertação. Mas não a alcança. O vício veste-se com as roupas da liberdade de escolha, mas em seu íntimo é escravidão compulsória, e quando o tempo tardiamente despe-o, já se fez feitor.


Nem Dmitri nem Ivan alcançam a almejada liberdade, pois – e isto é mal moderno – não a compreendem. Ivan e Mítia possuem na verdade um desejo de liberação. Liberar-se dos tormentos e sair pela tangente das Leis cósmicas[2]. Mas Mítia foge das leis cósmicas e cai na lei dos homens, assim como Ivan nega a ambas e rodopia indefinidamente no limbo que se seguiu. Ambos vivem atormentados pelo canto da sereia, um preso aos instintos o outro às falsas ideias, mas crendo-se livres; preferem a mentira à verdade. E quem de nós, não? Afinal, uma é doce e a outra é crua.


Dosteiévski conhece esta doçura, mas está também consciente de seu fel. O russo não cessa de chamar nossa atenção para a mentira: as que nos contam e, as de tipo mais grave, as que nós nos contamos, ora por conveniência, ora por não saber apartá-la de nós.  Destruidora de civilizações e de efeitos psicológicos nefastos[3], a mentira é a pequena rachadura que rompe o dique todo, e daí é uma questão de tempo para não se diferenciar mais o que é mar do que é cidade: a vida toda vira Atlântida sucumbida.





Mestre Zózimo, o monge ortodoxo que orienta Aliocha, sabendo da situação familiar dos Karamazovs, faz um apelo final a Fiódor, ao patriarca, emitindo um alerta sobre os perigos da mentira:


(…) Sobretudo, não minta ao senhor mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta a sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira continua a si mesmo e aos outros.[4]

Meditar sobre a mentira e a verdade é urgente, ainda mais quando alguns já anunciam uma era de Pós-Verdade, fragmentária, confusa e de ideologia pura[5]. Por isso, as Artes Liberais não são liberais no sentido ético-político atual, mas no sentido de libertação do homem por meio da investigação da verdade. Libertar-se pela escolha consciente, o uso da Razão[6] que o livra da ignorância, do escuro. As Artes Liberais visam ensinar-nos a detectar mentiras e falácias percorrendo o caminho trino da Gramática, Lógica e Retórica: o Trivium.


Pois Mítia não teve notícia das Artes Liberais, e Ivan, se o tivera, não as assimilou. Ambos irmãos nascem também na noite da consciência, na casa paterna de planta e colunas rachadas, e não chegam a alumiar-se. São as sementes que caíram na beira da estrada e por entre os espinhos.


Na Parte III, a que conclui a trilogia Entre Abismos e Belezas, trataremos de Aliocha, o caçula, a boa semente que achou campo fértil, que frutificou, que perdurou e é a linha mestra da história. Aliocha é o heroi que encarna os acalentados sonhos de Dostoiévski e que, em meio às águas mais enlameadas da literatura, transforma-se na flor de Lótus, brilhando imaculada sob a luz do sol nas últimas e breves páginas do romance.


___________________


[1] Carpeaux, Otto Maria. História da Literatura Ocidental.[2] Veja o livro “As Leis Eternas” de Mário Ferreira do Santos, tratado filosófico brilhante a respeito da estrutura da realidade, das leis presentes em todos os fenômenos de todas as ordens.[3] Jordan Peterson é um psicólogo clínico canadense que tem reacendido a importância de Dostoievski e trabalhado intensivamente com o tema da mentira e seus efeitos, a nível pessoal e social. Suas obras principais são “12 Rules for Life” e “Maps of Meaning: The Architecture of belief.”[4] Fiódor Dostoiévski, in Os Irmãos Karamazov – pág 527, ed. Nova Aguilar (Stáriets).[5] Mcintyre, Lee. Post Truth.  The MIT Press Essential Knowledge series.[6] Razão aqui é utilizada não necessariamente no sentido de raciocínio, ou Verstand em alemão, mas no sentido de Vernunft, que é a integração das partes num todo coerente, o que os poetas chamariam de “a razão da vida”.


Gustavo Bernardino é graduado em Economia e Mestre em Administração e Negócios pela UFMS, fellow da Fundação Alexander von Humboldt. Seu foco é no desenvolvimento de pesquisas na área de finanças e sistema bancário. Atualmente é empresário, desenhando e executando projetos na área de empreendedorismo na Alemanha, e é também consultor de internacionalização de negócios com foco no Brasil, Estados Unidos, Europa e Oriente Médio.


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