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Instituto

Alcuíno de York

Cultura, Ciência e Educação à Luz da Tradição

Foto do escritorIsabela Abes Casaca

Ad Astra per Litterae: Das Palavras às Estrelas

Atualizado: 1 de out.

1. Introdução


A Educação Clássica busca a excelência, com o propósito de desenvolver o ser humano em sua plenitude; o caminho para tão alto desígnio são as Artes Liberais. Embora cada arte guarde certo grau de independência, há também interdisciplinaridade entre elas, demonstrando que a Ciência e o Conhecimento emanam de uma única Fonte.

No intuito de atestar esta inter-relação, será empreendida uma análise com fulcro em alguns versos da Os Lusíadas, a grande epopeia da língua portuguesa. Será possível chegar até as Estrelas por meio das Palavras? Será que a leitura dos astros permeia a construção literária? Será possível aprender Cosmologia e Astronomia por meio da Literatura? Eis o trajeto: Ad Astra per Litterae(1)!


2. A Máquina do Mundo



O tema da mundi machina não é novidade na literatura luso-brasileira, pelo contrário, é recorrente em nossas obras e exerce fascínio em nossos literatas. Surge repentinamente, sem sobreaviso. Não discrimina escolas literárias: está no modernismo e no classicismo. Não segrega poetas: está nos versos de Carlos Drummond de Andrade e de Luís Vaz de Camões.

Como compreender este mistério? Seria preciso palmilhar vagarosamente uma estrada pedregosa de Minas, para então, ver a máquina do mundo se entreabrir “majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro, nem um clarão maior que o tolerável“(2), convidando-nos à aplicarmo-nos “sobre o pasto inédito, da natureza mítica das coisas“?(3).

Como interpretar a trova escrita por Camões no décimo canto de sua magnum opus? Para ascender a este grau de entendimento, precisar-se-á percorrer uma estrada, bem como, adquirir aprioristicamente certos conhecimentos. Far-se-á necessário conhecer a concepção e a intelecção da estrutura do Universo, que antecedeu o modelo heliocêntrico vigente e preponderante.


3. A Cosmologia Cristã Medieval


Antes de adentrar propriamente ao tópico, adianta-se: não se pretende advogar em favor de nenhuma teoria cosmológica. Apenas expor-se-á as características do modelo geocêntrico para melhor explicar os versos camonianos.


A Cosmologia Cristã foi fortemente influenciada por Aristóteles, assim como, pelo modelo elaborado por Ptolomeu: o Geocentrismo. É necessário destacar, nossos antepassados não olhavam para o Cosmos de maneira materialista, tal qual faz a práxis contemporânea predominante. Os sábios de outrora cultivavam a espiritualidade no olhar e a transcendência no pensar, maravilhando-se perante os encantos da Natureza.


Os estudiosos discerniam o Universo em dois limiares: o Sublunar e o Supralunar. Segundo as descrições, a Esfera Sublunar (ou Elemental) engloba tudo que fica abaixo da órbita da Lua, ou seja, a Terra. Neste lugar, há aquilo que ainda é imperfeito e corruptível. Por sua vez, a Esfera Supralunar (Etérea ou Celeste) reúne tudo aquilo que está acima da órbita da Lua, ou seja, a própria Lua, o Sol e os demais Astros.


“… os matemáticos dividiram o mundo em duas partes: uma que fica acima da órbita da lua, e outra que fica debaixo dela. E chamaram de “Natureza” o mundo supralunar, porque lá todas as coisas subsistem em virtude de uma lei primordial, e chamaram o mundo sublunar de “Obra da Natureza”, isto é, obra da parte superior, porque todo o gênero dos viventes, que no mundo sublunar são fortificados pela infusão de um espírito vital, recebem das essências superiores o alimento infuso através de percursos invisíveis, para que não somente nasçam e cresçam, mas também se alimentem e evoluam.
E também apelidaram aquele mundo superior de “Tempo”, por causa do curso e do movimento das estrelas que lá se encontram, e chamaram o mundo inferior de “temporal”, porque se move segundo os movimentos do mundo Superior. Igualmente, nomeavam o mundo supralunar de “Elísio”, em virtude da perpétua tranqüilidade de luz e paz, e nomearam o mundo inferior de “inferno”, devido à inconstância e à confusão das coisas que mudam“(4).



Conforme ilustra a gravura, o Universo era concebido como um conjunto de esferas concêntricas e cristalinas. O primeiro globo é a Terra, o mundo sublunar, habitat dos seres humanos. Então, inicia a Grande Esfera Celestial, com a Lua, servindo de limiar para dividir o imperfeito (sublunar) do perfeito (supralunar).


Após esta primeira distinção (sublunar e supralunar), verifica-se: também há degraus no mundo celestial, cada astro tem o seu devido lugar. Após a Lua, vêm respectivamente a órbita de Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Ultrapassadas estas instâncias celestes há o Firmamento, o espaço das Constelações e das Estrelas Fixas. E, no lugar mais alto dessa Hierarquia Transcendental: o Empíreo.


O Empíreo é considerado como a Fonte de onde emana a mais clara e intensa luz do Universo, desta esfera vem a força-motriz que, no princípio, possibilitou a criação de tudo quanto há. Este degrau hierárquico não se encontrava primordialmente no sistema ptolomaico, sendo um aperfeiçoamento cristão à cosmovisão clássica. Noutras palavras, o Empíreo era a personificação “do espaço etéreo da substância suprasensível, imóvel e eterna, movente do universo, cuja substância é o próprio ato: Deus“(5).


Esta descrição das esferas astrais encontra-se em muitas obras, como por exemplo, O Sonho de Cipião: “Vós não vedes para qual templo viestes? O universo inteiro está estruturado em nove círculos, ou melhor, esferas, a primeira das quais é a celestial, externa, que abraça todas as demais esferas. Ela é o próprio Deus Supremo, que contém e mantêm todas as outras unidas. Nela estão fixados os cursos das constelações que giram eternamente.


Sob essa esfera há mais sete que giram mais lentamente (…). Uma dessas esferas é ocupada por aquela estrela que na Terra é denominada Saturno. Depois, vem aquele fulgor propício e saudável ao gênero humano que se chama Júpiter. A seguir, aquela luz avermelhada para a Terra chamada Marte. Abaixo, o Sol ocupa a região quase ao centro, guia, príncipe e moderador das outras luzes, mente e princípio estruturador do mundo, tão imensamente grande que, com sua luminosidade, ilumina e penetra todo o universo.


Seguem-no, como satélites, a órbita de Vênus e a órbita de Mercúrio e, pela órbita inferior, a Lua é trasladada e iluminada pelos raios do Sol. Sob ela só há o que é mortal e caduco, exceto as almas dadas ao gênero humano como presente dos deuses. Acima da Lua, tudo é eterno. Por outro lado, aquela esfera que está no belo meio e em nona posição, a Terra, não se move, e está situada na parte mais baixa, e todas as massas são arrastadas para ela por sua própria força de atração“(6).



Da mesma forma, Dante Alighieri, em sua célebre obra, valeu-se de uma concepção semelhante. Na Divina Comédia, sua jornada espiritual começa pelas profundezas do abismo infernal, para depois ascender por todas as Esferas Celestiais até o Empíreo, cuja visão está além da compreensão humana.


No Céu Empíreo, Dante encontra-se com a Luz do Altíssimo, a força primeira que tudo movimenta, o motor imóvel proposto por Aristóteles. O florentino termina sua obra magistralmente, com dizeres sublimes, descrevendo a força que move o Universo: “Qual roda, que ao motor pronta obedece, volvia o Amor, que move Sol e demais Estrelas“(7).


Explicada a cosmologia antiga, tem-se a base necessária para compreender a cosmovisão clássica, que permeava a consciência dos povos ancestrais. Analisar-se-á seguramente o décimo canto das Os Lusíadas, a finalização da longa trajetória de Vasco da Gama, em sua procura pela rota marítima que levaria até às Índias.


4. Os Lusíadas (Canto X)


Depois de muito navegar, Vasco da Gama e seus marinheiros aportaram na Ilha dos Amores, local de descanso onde os navegantes recobram suas energias. Então, o explorador português é convidado para com os olhos corporais contemplar “o que não pode a vã ciência dos errados e míseros mortais“(8). Assim, é guiado para o alto de um monte, onde avista todo Universo, partindo do “alto” para “baixo”.


“Qual matéria seja não se enxerga. Mas enxerga-se bem que está composto De vários orbes, que Divina verga Compôs, e um centro a todos só tem posto,Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,Nunca se ergue ou se abaxa, e um mesmo rostoPor toda a parte tem; e em toda a parteComeça e acaba, enfim, por divina arte,

“Uniforme, perfeito, em si sustido,Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.”


Pela leitura destes versos, percebe-se que Camões adotou o modelo ptolomaico para descrever o Universo, considerando que Este é composto por diversos orbes concêntricos, criados pelo Divino Poder. O Cosmos é uniforme, perfeito e seguro, tal qual o Criador e seus desígnios. Essa ordenação é facilmente perceptível, muito embora a matéria que a permeia não seja visível. Tal invisibilidade é eco de uma concepção aristotélica, crê-se que as esferas celestes são formadas por uma matéria diferente dos corpos sublunares, cuja natureza não era conhecida: a quintessência.


“Vês aqui a grande Máquina do Mundo,Etérea e elemental, que fabricadaAssi foi do Saber, alto e profundo,Que é sem princípio e meta limitada.Quem cerca em derredor este rotundoGlobo e sua superfície tão limada,É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,Que a tanto o engenho humano não se estende.

Este orbe que, primeiro, vai cercandoOs outros mais pequenos que em si tem,Que está com luz tão clara radiando,Que a vista cega e a mente vil também,Empíreo se nomeia, onde lograndoPuras almas estão daquele BemTamanho, que ele só se entende e alcança,De quem não há no mundo semelhança.

(…)

Olha estoutro debaxo, que esmaltadoDe corpos lisos anda e radiantes,Que também nele tem curso ordenadoE nos seus axes correm cintilantes.Bem vês como se veste e faz ornadoCo largo Cinto de ouro, que estelantesAnimais doze traz afigurados,

(…)

Debaxo deste grande Firmamento,Vês o céu de Saturno, deus antigo;Júpiter logo faz o movimento,E Marte abaxo;O claro Olho do céu, no quarto assento,E Vénus, que os amores traz consigo;Mercúrio, de eloquência soberana;Com três rostos, debaxo vai Diana.

(…)

Em todos estes orbes, diferenteCurso verás, nuns grave e noutros leve;Ora fogem do centro longamente,Ora da Terra estão caminho breve,Bem como quis o Padre omnipotente,Que o fogo fez e o ar, o vento e a neve,Os quais verás que jazem mais adentroE tem co mar a Terra por seu centro.

Neste centro, pousada dos humanos,”




Nos versos superiores, revela-se claramente o que é a Máquina do Mundo: trata-se do Universo descrito pela engenhosa cosmologia clássica. As trovas começam descrevendo que a Máquina tem uma parte Etérea e Elemental, ou seja, Supralunar e Sublunar, tal qual a explicação já elaborada.


Após a anunciação da Máquina como fruto do alto e profundo Saber, começa-se a descrevê-la, principiando pelo seu grau mais alto: o Empíreo, então, vai-se descendo nas órbitas. Fala-se do Firmamento e suas constelações. Fala-se das Esferas dos sete Astros: Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio e Lua. Enfim, chega-se a Terra, a pousada dos humanos.


É importante salientar, os dois luminares não são nomeados de maneira óbvia, o Sol é chamado de “claro Olho do céu”, usando-se uma terminologia presente nos poemas homéricos; já a Lua é chamada de “Diana”, tal qual a mitologia grega, sendo as três faces uma metáfora para as três fases visíveis (minguante, crescente e cheia).


E donde o poeta português tirou tal inspiração? Camões teve como fonte o Tratado da Esfera, traduzido pelo erudito lusitano Pedro Nunes, cuja autoria pertence ao astrônomo medieval João de Sacrobosco. Sacrobosco cunhou o termo sphaera mundi e professava a ideia do Cosmos como um engenhoso mecanismo criado pelo Grande Arquiteto do Universo.


“Qual é a forma do mundo. A universal máquina do mundo divide-se em duas regiões: a etérea e a elementar. (…) Realmente, a terra está colocada no meio de tudo (…). Assim realmente dispôs Deus, glorioso e sublime. Em torno dessa região elementar há a região etérea lúcida, com essência imutável permanece imune a toda variação, com um movimento circular contínuo; e ela é chamada pelos filósofos de quinta essência. Da qual existem nove esferas, como acabou de ser dito, a saber: da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das Estrelas Fixas e último Céu.“(9)


O Tratado da Esfera foi um livro de grande notoriedade e importância, pois, além de influir na formação intelectual do erudito e polímata Luís de Camões, foi adotado nas universidades por quase cinco séculos, formando astrônomos, astrólogos, cosmógrafos e navegadores europeus. A partir do século XVI, passou a ser texto básico para a formação dos pilotos que protagonizaram a Era dos Descobrimentos. A longevidade e o sucesso da obra são atribuídos ao estilo primoroso de João de Sacrobosco, tanto do ponto de vista pedagógico quanto do literário. O tratado criado para o estudo das disciplinas do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), congrega também referências de autores célebres do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética), atribuindo singular riqueza a obra.


5. Considerações Finais


Espera-se que a explanação a respeito da mundi machina tenha ampliado compreensões, bem como, tenha se demonstrado a interdisciplinaridade presente entre as Sete Artes Liberais. Finalizada essa descrição, pergunta-se: Qual será a postura do leitor? Tal qual o eu-lírico do poema drummondiano, ficará indiferente, “lasso, desdenhando colher a coisa oferta“(10) que se abriu gratuitamente ao seu engenho? Como a maioria dos homens modernos repelirá a Máquina do Mundo? Ou comover-se-á encantando com a grandiosidade do misterioso e eterno Universo? Almejará trilhar a ascensão da Terra ao Empíreo? Peregrinará pelo caminho ascensional, principiando pelo domínio das artes das palavras; elevando-se até a expertise da arte dos astros?

Alea iacta est!Ad Astra per Litterae!


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(1) Até às estrelas com a literatura.

(2) ANDRADE, Carlos Drummond. “A Máquina do Mundo“.

(3) Ibidem.

(4) HUGO DE SÃO VÍTOR. “Didascalicon de studio legendi“.

(6) CÍCERO, Marco Túlio. “O Sonho de Cipião“.

(7) ALIGHIERI, Dante. “A Divina Comédia“.

(8) CAMÕES, Luís Vaz de. “Os Lusíadas“.

(9) SACROBOSCO, João. “Tratado da Esfera“.

(10) Opus citatum.

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