Os dois textos anteriores da série a Corrupção da Palavra – A Bestialização do Homem e a A Babel às Avessas – tiveram como objetivo introduzir tão vasto e profundo assunto, e ao mesmo tempo, introduzir um brilhante texto do profº Mário Ferreira dos Santos, publicado em única edição em 1966, por sua própria editora, a Matese, um ano antes do falecimento do mesmo. A alegoria foi publicada como preâmbulo do livro As Grandezas e Misérias da Logística(1), onde o autor trata de forma clara e completa das possibilidades e limitações da lógica e da dialética. O texto se encontrava com alguns erros da edição, foi transcrito e revisado pela Isabela Abes Casaca, a qual rendemos nossa gratidão.
UM APÓLOGO COMO PRELÚDIO – A MAIOR FAÇANHA DE SATÃ
Quando Satã, depois de observar, no paraíso terrestre, aquelas criaturas que o Senhor havia criado, envoltas na sua ingenuidade, imersas apenas no bem, tentou-as, então, para que desobedecessem ao Senhor, dando-lhes, primeiramente, uma exagerada consciência de si mesmas, por que sabia que a afirmação de si mesmo é já o caminho de uma negação. Não esperava que o castigo lhes poupasse a existência.
E ao vê-las, depois, dispersas pelo mundo, lutando pela obtenção dos bens de que necessitavam, construindo suas cabanas, suas povoações e, finalmente, as suas cidades, jamais deixou de rondá-las, de sugerir outras tantas negações, outros tantos desvios, para que, afinal, pudesse conquistar aquelas criaturas, retirando-as do poder do Senhor.
Preocupado, contudo, com o destino daqueles seres, e, sobretudo, com o que deveria fazer para de uma vez por todas afastá-los do Senhor, reuniu os príncipes das cortes do inferno, para traçar planos decisivos.
Expostas as intenções que o animava, solicitou de seus pares que propusessem soluções. Entre os demônios, falou então Angafor:
— Sem dúvida que o caminho de Ialdabaó, o senhor destes mundos, é o caminho da afirmação. Tais homens vivem, contudo, de excessivas afirmações, o que lhes impede de cair em nossas mãos. Só nos resta, para conquistá-los, destruir as afirmações e aumentar as negações.
— Sem dúvida, corroborou Belfegor, mas mister traçar um plano cuidadoso e seguro. E para que ele dê bons resultados, é preciso que siga por degraus, um a um, para que não reaja às nossas insinuações e, a pouco e pouco, perca toda a segurança e precipite-se, definitivamente, na negação total. Então, cantaremos a nossa vitória.
— E que degraus propões? — Perguntou-lhe Satã.
Belfegor começou a esfregar levemente as mãos, enquanto olhava de soslaio os seus pares, e com um sorriso leve no rosto e os olhos semicerrados, numa voz aflautada, ora envolta nuns sons roucos, por entre sibilos prolongados, começou a falar calmamente:
— Eles sabem que o Senhor existe e o temem. Mas, nem no paraíso terrestre seus pais viram o Senhor. Nunca o viram. Apenas sabem da sua existência pelos testemunhos que o mundo lhes oferece. Começaremos por infundir-lhes que não podem acreditar nas coisas que não sentem. É fácil convencê-los, por que muitas das coisas que sobre elas pensam, realmente não existem, e poder-se-a incutir-lhes que perguntem como saberemos com segurança que o Senhor existe?
Haverá, então, muitas respostas, mostrando tantas obras que há no cosmos, que atestam a existência do Senhor. Então, incutiremos a pergunta: mas há tanto mal no mundo. Como poderemos explicar isso como obra do Senhor?
Dirão, então: mas o mal não é feito pelo Senhor. E então incutiremos a pergunta: Mas, por que o Senhor tolera que tais males existam?
Nesse momento, já teremos posto em seu pensamento a dúvida, já se encontrarão numa encruzilhada.
Depois, faremos que muitos afirmem que só existe o que é sentido, e que é fruto apenas da imaginação o que não é sentido. Noutros, mais voltados para as coisas agradáveis, incutir-lhes-emos para que digam que cabe ao homem procurar o agradável, o mais agradável, o que o deleite, o que lhe dê prazer, porque o prazer é real, o prazer existe, e que se afastem da dor, do sofrimento, que é penoso e desagradável.
A seguir, farem os que alguns ponham em dúvida a certeza de que é real o que sentem, porque estão sujeitos a tantos erros, a tantas ilusões.
Quando chegarmos aí, já teremos um grande número de nosso lado.
Nesse momento Satã atalhou:
— Não nos pode interessar apenas um grande número. Teremos de dominar a todos teremos que separar todos do Senhor.
— Se me permite, continuou Belfegor, poderemos chegar lá, continuando degrau por degrau.
— Continua expondo a tua proposta, ordenou Satã.
— Farem os ver, por meio daqueles que dominarmos, que os homens são apenas seres sensíveis, e que devem preocupar-se em viver a vida e nada mais, já que a morte será apenas um grande final.
— Nada mais tens a acrescentar, perguntou Satã.
— Senhor dos Infernos, de dúvida em dúvida, faremos o homem descrer de tudo, e até de si mesmo. Ele, então, não afirmara mais nada, só negará. Nesse momento, ele será totalmente nosso.
— Enganas-te, Belfegor, o homem não será ainda totalmente nosso. É preciso mais, mais.
Belfegor dava mostras evidentes que estava confuso. Seus olhos perdiam-se, e seu rosto tornara-se ainda mais sombrio. Finalmente, disse:
— Senhor dos Infernos, que mais poderemos querer depois de havermos alcançado o nada. Que mais se poderia fazer?
Então Satã tomou um postura dominadora, e sua voz enrouqueceu exageradamente. E em sons cavos, lentos, que escoavam pelas abóbadas dos Infernos, sentenciou dominadoramente:
— Enquanto o homem acreditar que a palavra tem um significado, que ela se dirige para alguma coisa de real, ainda afirmará, até quando nega, até quando recusa aceitar qualquer coisa positiva. Só destruiremos no homem os últimos laços que o ligam ao Senhor dos Céus, quando nele destruamos a fé nas palavras, quando o convencermos que elas são apenas vozes que ele articula, que elas não pretendem realmente dizer nada, mas apenas são arbitrárias, apenas indicadoras de uma tentativa de classificar as coisas. Com a palavra começou o homem, e é com a destruição dela que o destruiremos. Só quando destruamos a crença no valor intrínseco das palavras — (disse ele, dominando com o olhar de fogo a todos os demônios presentes) — quando nele destruamos o que há de mais humano, que é a capacidade de dar uma significação a elas, quando afinal, não creiam mais nelas, quando a palavra tenha perdido todo conteúdo, então, sim, irmãos das Trevas, então dominaremos com um grande vazio as suas almas, então os teremos para sempre voltados para o nosso lado, afastados do Senhor dos Céus, e realizado a nossa maior façanha: — tonitruante completou: — teremos destruído a obra do Senhor dos Céus, teremos humilhado Ialdabaó para todo o sempre. Seremos, então, os senhores do mundo, e nunca mais perderemos o nosso poder, que será omnipotente. Terem os atingido a onipotência do Mal, e seremos tão grandes como ele. Então, todas as coisas esquecerão para sempre Ialdabaó…” (1)
COMENTÁRIOS
1) Os termos “afirmações”, “negações” e seus derivados, usados em diversas partes do texto, são conceitos chaves para entender toda a obra do Mário Ferreira dos Santos. Afinal, afirmações e negações de que? Mário Ferreira escreveu densa obra na área da Lógica e da Dialética, criou a Penta e a Decadialética, onde analisa um mesmo assunto por 5 dimensões, em seguida por 10 eixos dialéticos, para que todos os aspectos de um objeto e suas relações internas e externas sejam examinadas e, com isso, evitar erros de perspectivas parciais e falaciosas.
Além de tão expressiva obra de Dialética, Mário Ferreira é o autor da Filosofia Concreta e da “Mathesis Megiste” (ensinamento supremo), que constituem ambas sua contribuição na área da Metafísica. Em síntese, são um conjunto de afirmações apodíticas ou autoevidentes, que no mesmo ato de ouvi-las ou pronunciá-las, uma mente minimamente preparada percebe que são asserções inegáveis, ao mesmo tempo também indemonstráveis. Ou seja, são um conjunto de ideias que fundamentam a própria lógica, a própria Realidade, e de tão simples e dadas como certas nem paramos para pensá-las e explicitá-las, são os pressupostos dos quais não nos damos conta e que não precisa ser dito.
São ideias que quando contrariadas levam à confusão, distorções e ao erro. O conhecimento que existimos é uma dessas ideias, a existência de Deus, outra, e assim por diante. Mário Ferreira a partir de ideias fundamentais, como estas, por via lógica com sua sofisticada dialética deduz outras tantas que constituem um todo, uma cosmovisão, uma Cosmologia. Então tudo que esteja em coerência com o “Ensinamento Supremo”, ou seja, com sua Cosmologia, é dito que afirma, afirma o Ser, afirma a Realidade. Tudo que nega as leis metafísicas expostas por Mário Ferreira, são para ele negações da Realidade.
Para Mário Ferreira toda a cultura, inclusive a Filosofia e suas diversas correntes, estão sujeitas a tal dualidade: a negatividade e a positividade. E, boa parte de sua obra é uma análise minuciosa do que na cultura e na filosofia é negação e o que é afirmação. Vale aqui uma ressalva: um mesmo autor ou mesma teoria mesmo tendo erros e negações, podem ter positividades, ou seja, estar coerente com as afirmações. Este entendimento afasta o maniqueísmo tosco e ingênuo e aproxima de um exame apurado, para que cada um separe o joio do trigo e aproveite de cada coisa o seu melhor.
2) Quanto aos nomes Angafor e Belfegor, na obra, são dois dos principais demônios do inferno e ajudantes de Satã. Não encontramos referências a Angafor. Quanto a Belfegor de acordo com o ocultista francês Jacques Auste Simon Collin de Plancy (1818) (2) em seu dicionário infernal ilustrado, onde apresenta mais de 60 demônios. Belfegor é um dos sete príncipes do inferno e representa o pecado da Preguiça.
Ialdabaó ou Yaldabaoth é o nome dado por alguns gnósticos à Deus, o mesmo Demiurgo, que no Timeu de Platão é o Arquiteto do Universo, o Artífice, o Criador. Em alguns sistemas de crenças, é a deidade responsável pela criação do universo físico.
Esta incrível alegoria apresentada por Mário Ferreira, nos faz refletir, dentre outras coisas, a cerca da linguagem e da palavra: “Com a palavra começou o homem, e é com a destruição dela que o destruiremos.” Com a palavra, podemos nos reerguer, nos reconstruir e nos elevarmos às alturas. Com a palavra, podemos resgatar na cultura da humanidade as mais elevadas obras, mas é preciso colocá-la no seu justo lugar. Não como mero instrumento de comunicação sem nenhuma transcendência, mas como os antigos a viam, como portadora de mistérios que nos revelam as chaves da compreensão de si, do mundo e de Deus. Este é o convite da Escola de Artes Liberais para estudarmos a Ciência da Palavra, na acepção antiga – o Trivium – e, com ele resgatarmos os elementos da Cosmovisão da antiguidade e da idade média, que como um sopro de vida poderão acender o Espírito, na materialista e decadente educação e cultura contemporânea.
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(1) dos Santos, Mario Ferreira. As Grandezas e Misérias da Lógistica. 1966.
(2) de Plancy, Jacques Auste Simon Collin. Dictionnaire Infernal. 1818.
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