Seria um exagero dizer que vivemos atualmente numa babel às avessas, por cada vez mais as palavras ganharem significados que corrompem o sentido original das mesmas? Mas… para que se importar com isso? Afinal, não são as palavras apenas instrumentos funcionais de comunicação sem nenhuma transcendência e, a ligação entre elas e seus significados mera arbitrariedade, como dizem os linguístas? Que mal pode fazer a mudança de significados para uma mesma palavra ou mesmo a ampliação de seu campo semântico? Qual o problema da perda dos significados mais profundos e sublimes das palavras e sua substituição por significados mais materialistas, palpáveis e que se adaptem a compreensão de nosso tempo? Qual o problema de, ao enunciar um discurso, cada um interpretar as palavras à sua maneira? Que mal tem o uso aproximativo de signos se estes mesmos são tão arbitrários? Vale a pena o preciosismo dos antigos poetas e filósofos na precisa definição dos conceitos e suas etimologias?
Comecemos do início. A palavra seja ela em sua forma de expressão falada, escrita ou mesmo pensada, é composta sempre por um significante e um significado. O som, a grafia e as imagens mentais constituem o chamado significante em suas diversas possibilidades. O significado por sua vez não está no significante, enquanto o significante é de natureza perceptiva, sensorial e imagética, o significado é de ordem puramente abstrata. Sim, isso tem tudo a ver com o mundo sensível e das ideias, de Platão e Aristóteles, mas deixemos isso quieto por enquanto, basta que entendamos o significante e o significado já explicados.
A história bíblica da Torre de Babel conta a gênese da diversidade de línguas, como que por um mistério divino se produziu repentinamente uma multiplicidade de significantes para os mesmos significados e, claro, acompanhados de uma profusão de formas lógicas sintático-semânticas que propiciaram a criação dos primeiros troncos linguísticos da era pós-diluviana. Para nosso espanto, a torre da confusão tem sido reeditada às avessas nos dias atuais. Enquanto a primeira, se caracterizou pela profusão dos significantes sobre os significados, surgida de uma lição divina diante à desobediência de um rei; a segunda em toda sua sutileza se apresenta como a obra prima do Mal, ocorrendo justamente o inverso: a profusão de múltiplos significados para os mesmos significantes, bem como o alargamento quase esquizofrênico do campo semântico de algumas palavras “chaves”.
Na nova babel, não se trata de criar novas línguas mas corromper as que já existem, diminuir o vocabulário, a capacidade comunicativa e a precisão da linguagem, aumentar as possibilidades de significação de uma mesma palavra e fomentar o uso impreciso dos conceitos, mesmo por filósofos e cientistas. A ponto de tornar a comunicação falada e escrita obscura, nebulosa e, corrompendo até mesmo as palavras mais sublimes como Amor, Justiça, Ordem e Verdade, limitar de uma vez por todas o imaginário do vivente, para que este, mesmo falando de amor não entenda o que é amor, mesmo falando da verdade não entenda nada o que seja verdade e até a negue fervorosamente sob o manto hipócrita de bom senso relativista. Falam do amor como algo narcisista e erótico, negam sua transcendência e perseguem os que pensam diferente como piegas e ingênuos. Falam muito da justiça, mas a entendem em um sentido estritamente materialista, político e ideológico. É muito comum tais palavras virem acompanhadas de uma segunda, como justiça social, mostrando que não se trata de justiça mas, de uma modalidade de justiça, que distorce inevitavelmente o sentido originário, a distanciando da consciência clara, do equilíbrio e perfeição que lhe é inerente. Falam de ordem e autoridade, mas atribuem características repressivas indesejáveis, confundindo ordem com rigidez e autoridade com autoritarismo.
São muitos os exemplos de palavras fora de seus lugares. O que se convencionou chamar jocosamente de “politicamente correto” exemplifica os casos mais dramáticos e destrutivos destas aplicações argutas de engenharia social. Olhem bem. Defendem o aborto indiscriminado sob o rótulo de saúde reprodutiva da mulher, dizem defender a igualdade, a justiça e ser contra o preconceito, ao mesmo tempo que institucionalizam e fazem virar lei a discriminação por cor, gênero e quetais. Dizem defender as crianças ao mesmo tempo que roubam sua inocência. Acusam de intolerantes e preconceituosos quem pensa diferente, ao mesmo tempo que demonstram a verdadeira face da intolerância e do preconceito, ao discriminarem e censurarem aqueles que não repetem seus mantras, julgam pelas aparências e dão ouvido às más línguas, hoje institucionalizadas naquilo que chamam jornalismo. Se acham detentores da virtude, mas escondem sem perceber seu ódio, sua indignação, revolta e preconceitos, envolto em um vocabulário angelical florisbundo “politicamente correto”, que mais serve paras obscurecer em si mesmo as trevas mais sutis e escuras.
Mas quem, então, é o responsável por tanta confusão? Que inteligência maquiavélica se oculta nas engrenagens deste robusto maquinário de lavagem cerebral em massa? Seriam os poderosos do mundo através de seus múltiplos tentáculos de instituições, empresas, ongs, partidos e governos? E se disséssemos que não é este o ponto? O jornalista Ruy Fabiano, em seu livro “Profanação”(1), bem observou a questão em sua reflexão das origens malignas da profanação do verbo, quando o autor rompe a narrativa política e histórica da primeira parte do livro para chegar numa conclusão mais mística que científica: que por trás de todo o complexo emaranhado das engrenagens do poder, dos interesses e forças que atuam em prol do que é mais destrutivo, deva existir sim, uma inteligência diabólica.
Alguns podem julgar ser o diabo um mito, outros podem atribuir interpretações simbólicas, como uma figura arquetípica e outros ainda o compreender em seu aspecto literal, desde o mais estereotipado chifrudo que fede a enxofre até os mais finos entendimentos da questão. Seja a forma de entendimento de cada um, a história do anjo caído é das mais antigas do mundo. Surgiu em épocas e culturas das mais diversas e, em nossa literatura, está muito bem representada na que talvez seja nossa maior epopéia: O Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa.
“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso… Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.”(2)
É possível que a questão do bem e do mal, de Deus e do Diabo, seja talvez, o maior tabú da modernidade. São daquelas coisas metafísicas impossíveis de serem provadas, mas que quando tomadas como certas fazem toda diferença. Não é novidade que no edifício do conhecimento moderno, não tenha vez tais elementos e causas metafísicas e transcendentais.
Já dizia Mário Quintana: “O maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe“. Segundo a cartilha relativista do materialismo não existe nem o bem nem o mal, pois ora o bem pode ser mal e o mal pode ser bem, o mesmo vale para as verdades eternas e absolutas, para Deus e para o Diabo e, no final, tudo pode ficar um tanto invertido.
O fenômeno da babel às avessas foi também identificado e narrado ficcionalmente por George Orwell e Mário Ferreira dos Santos, ambos o considerando como a obra prima do Mal. O que seria mais engenhoso do que pelo domínio das palavras chegar ao domínio de coração e mentes, como já sugeria George Orwell em seu 1984(3), quando apresentou em sua obra de ficção a tecnologia da novilíngua? O profº Mario Ferreira dos Santos chega a chamar tal fenômeno de “a maior façanha de satã”, onde narrou miticamente o momento da concepção de tal engenho. Um excerto desse texto já foi apresentado na primeira postagem da série: “A Corrupção da Palavra I: A Bestialização do Homem“. Publicaremos sua forma integral, com breves comentários, na próxima postagem: “A Corrupção da Palavra III: A Maior Façanha de Satã”.
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(1) RABELLO, Ruy Fabiano. Profanação. São Paulo: Ed. Girafa – Escrituras, 2005.
(2) ROSA, Guimarães. Grande Sertão Veredas. 2001, p.26.
(3) Orwell, George. 1984, primeira publicação em 1949.
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